THE BLUE NOSES GROUP
Viacheslav Mizin / Alexander Shaburov - Moscovo / Rússia
- arte conceptual contemporânea -
Sokolov é ministro e ficou escandalizado. Dois polícias a beijar-se? Uma vergonha. Sacou do lápis azul, já que a pistola não estava à mão, e vetou a obra. Essa e mais umas 16 do género, todas impróprias. As outras, as que não envergonhavam ninguém, lá foram despachadas para Paris, para serem expostas na galeria Maison Rouge. Nome adequado, se tivermos em conta os antepassados do censório pudor do ministro da Cultura russo. Jdanov, por exemplo, com a sua paranóica "arte para o povo" nos anos 40; ou até os nazis, com a feroz perseguição à "arte degenerada".Portugal, que acaba de receber uma pequena amostra do gigantesco Hermitage russo, bem pode desconfiar: terá Sokolov andado à procura de anjinhos mais ostensivamente eróticos? De imperatrizes de decote impróprio? De Vénus ocultas em telas guerreiras? Não se sabe, até porque na Rússia dos czares ainda não havia polícias aos beijos, pelo menos na tela. Já se avançarmos mais umas décadas teremos, com selo oficialíssimo, aquele que será o beijo boca-a-boca mais repelente e também mais icónico de toda a história: o de Leonid Brejnev e Erich Honecker, selando a submissão política da então República Democrática do Leste alemão ao poderoso império da União Soviética. Agora não: o que os desavergonhados artistas russos queriam mostrar, além de polícias "fazendo amor e não guerra", como diriam os adeptos do gerúndio, era uma espécie de farra mordaz, onde até se viam Putin, Bush e Bin Laden numa cama grande, em cuecas. Por estas e outras, e sabendo como Paris é uma cidade recatada e conservadora, avessa à ironia e ao vício, Sokolov puxou dos seus galões e declarou: "Se esta exposição aparecer lá, envergonhará a Rússia, e todos nós teremos responsabilidades." Pois. Os artistas, como era de esperar, não acharam graça. Slava Mizin, um dos fundadores do grupo Blue Noses, explicou à Reuters: "Não quisemos dizer nada. Quisemos mostrar - está aqui uma era de misericórdia a chegar depois dos severos anos de 1990 e duas pessoas estão a beijar-se. Ponto final." Mas os artistas confundem desejos e realidades. Porque a misericórdia não chegou, Sokolov sabe disso, e mais do que evitar escândalos, ele quer preservar o que muitos quereriam apagar de vez. Se ele se desse ao trabalho de, com Putin (agora em Portugal, para praticar algumas artes da diplomacia do degelo), assistir a pelo menos dois filmes do actual DocLisboa, Three Comrades e Rebellion: The Litvinenko Case (este último em exibição amanhã na Culturgest, às 16h30), veria a verdadeira vergonha: a de Grozni em cinzas e pejada de mortos devido à brutalidade dos bombardeamentos russos ou a de constatar que o maquiavelismo frio das novas máfias no poder vai alastrando ante a complacência geral. Claro que, para Sokolov, serão mais suportáveis mil mortos do império que dois polícias a beijar-se. Perante isto, o velho "agente" James Bond já não poderia escrever, como fez em 1962 na foto da espia moscovita Romanova, Da Rússia, com Amor. Horror seria mais apropriado.
Nuno Pacheco, Jornal Público
Nuno Pacheco, Jornal Público